Ao som dos chocalhos nas mãos das crianças na área educativa ao lado, os erês abrem caminho. Adentro a exposição inédita de obras ritualísticas da artista cubano-americana, Ana Mandieta (1948-1985). A primeira visão que tenho é a silhueta da artista cavada na terra, a marca de sua presença enterrada, em comunhão com o solo. Um líquido vermelho pastoso preenche a silhueta, como sangue. Elemento que percorre a testa da artista no auto-retrato no início da mostra.
Em seguida mais uma performance de manifestação sob um anjo negro que parece ter as asas quebradas, Ana espalha o pigmento vermelho em volta de sua silhueta cavada na terra. A morte está presente, mas através do ritual ela parece transcender esses limites. A mulher deusa, com poderes divinos, manifesta através de suas ações ritualísticas. Devota e ao mesmo tempo agente de suas próprias transformações.
Em Butterfly (1975), o vídeo com efeitos visuais que me remetem ao teste de Hirschberg, trazem uma sensação de transcendência, uma metamorfose possível ao entrar em contato com o ritual. Mandieta nos ensina como.
Sigo o caminho da exposição ao som do riacho que percorre o salão no projeto de Lina Bo Bardi. Ana Mandieta traz elementos naturais em suas obras, terra, água, ar e fogo. A fumaça da queima do corpo dentro da silhueta na terra, ao lado do curso do rio. O fluxo da natureza, da destruição e criação, vai além da imagem representada e passa para o material utilizado. A textura do filme Super 8, com seus granulados que parecem queimar ilusionísticamente pela técnica audiovisual.
Queimar, transmutar, deixar o que ficou para trás e abrir caminho para o novo. Performances xamânicas banhadas no sangue ilusório mas tão real quanto à transformação que passam ao cobrir o corpo com penas para incorporar o espírito do pássaro, como os indígenas. Uma simbiose, um renascimento, como a fênix. Uma fertilidade feminina grávida de novas possibilidades que irão surgir. Voltar ao útero da mãe natureza e renascer com novos poderes adquiridos. Esse é o poder da arte ritual.Permite entrar em contato com essas forças femininas do inconsciente, de transmutação, geração, regeneração.
A artista não é apenas um objeto na performance, nós nos tornamos ela, enquanto se coloca em situações extremas, como se deixar ser levada pela maré enquanto se entrelaça em troncos que também estão sendo levados pelo fluxo das águas. Nos identificamos com as forças que percorrem nosso subconsciente e sentimos no estômago, no ventre, no coração. Um corpo de obra místico, que consegue captar e expressar as forças da natureza inclusive pelo material escolhido. O corpo, a performance, o vídeo, a terra, o fogo, a água, a fumaça. Nada se perde, tudo se transforma.
Algumas obras remetem às pinturas rupestres, arquétipos femininos que ficaram na sombra da humanidade, mas que marcam a vontade primal de expressar e manifestar através da arte. Colocam luz nas forças inconscientes, como o brilho do sol na água que banha a silhueta abstrata no vídeo que fecha a exposição. Curadoria maravilhosa de Daniela Labra, Hilda de Paulo e Maíra de Freitas, que uniu a presença da artista, com os elementos que compõem sua obra e fechou muito bem com o símbolo abstrato da silhueta, carregado de significado. Para mostrar que a forma grávida de intenção sempre foi usada como ferramenta para manifestar o espiritual. Um confiança na manifestação do divino, que a arte promove ao nos passar uma certa segurança de que somos o universo e podemos manifestá-lo pela arte ritual .