Arte Acontece

 

Herança

 

No meio do caminho tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

Tinha uma pedra

No meio do caminho tinha uma pedra

 

Nunca me esquecerei desse acontecimento

Na vida de minhas retinas tão fatigadas

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

Tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra.

(“No Meio do Caminho”- Carlos Drummond de Andrade)

 

O acaso tem uma participação importante nos acontecimentos em nossas vidas, assim como a arte. Arte acontece em qualquer lugar, a qualquer momento. Como nas cavernas paleolíticas onde pinturas rupestres surgiram de repente. Em um espaço e tempo específicos. Como uma expressão da necessidade de entender o mundo simbolicamente. Nesse sentido, arte é a pedra no caminho, um encontro com o acaso, que traz à tona sentimentos que precisam ser expressados metaforicamente.

Essa epifania me veio enquanto conversava com o artista Thiago Rocha Pitta, que ao falar de sua arte me inspirou sentimentos fenomenológicos e literários. Não pude deixar de relacionar seu trabalho à sua origem. Nasceu em Tiradentes, Minas Gerais, um lugar que visitei muitas vezes na infância. Minas é uma região com uma história muito rica de arte, desde o Barroco na época do Brasil Colônia até os dias de hoje com o maravilhoso centro de arte contemporânea do Inhotim.

Thiago trabalhou com Tunga por muita anos e também com Lygia Pape. Inicialmente influenciado pelo seu pai artista, seu meio de expressão passa do vídeo à instalação, passando por pintura e fotografia, sempre se relacionando à natureza de maneira poética. Ele cria peças que trazem à tona sentimentos profundos que são difíceis de colocar em palavras. Como em sua obra “L’Eremita”e “L’Eremo”. A tradução não permite chegar ao sentido próprio que os títulos escolhidos pelo artista dão às suas criações, por isso melhor não arriscar. Minha intenção de explicar seus trabalhos apenas aumenta o silêncio que prevalece em suas obras.

Ambos são peças- tenda, o pano banhado em uma sopa de cimento que as  petrificam, pregados firmemente ao chão. A primeira foi feita nas montanhas de Engadin, São Moritz, em 2012, e a outra dentro da galeria em que foi apresentada  durante a Gluck50, uma residência que Thiago participou em 2013 em Milão. Lá ele cavou um enorme buraco no chão da galeria e colocou a tenda molhada de cimento por cima.

“L’Eremita”e “L’Eremo” oferecem uma sensação de proteção, mesmo que pareçam abrigos um tanto rígidos. Somente quem os adentra pode saber o que acontece. Algumas pessoas tiveram reações estranhas lá dentro, alguns até medo, conta o próprio artista. Como homens paleolíticos que colocavam suas pinturas nas paredes das cavernas para sentirem que dominavam o mundo lá fora, as peças-tenda também provocam sentimentos parecidos. Assim a arte acontece lá dentro como uma mágica.

“L’Eremo” nos dá uma chance de experimentar arte protegidos, isolados do mundo lá fora. Lá dentro somente o silêncio, você, a tenda, e o mundo lá fora. Nesse caso o silêncio é um discurso profundo, como a pedra no meio do caminho no poema de Drummond, o silêncio que diz tudo.

Suas obras evocam forças da natureza que expressam sentimentos poeticamente. Sentimentos que estão escondidos dentro de cada um de nós, esperando por um encontro casual que os fazem brotar. Nos sentimos como o barco na obra “Herança”, flutuando no meio do imenso mar, esperando que algo aconteça. Evocando e sendo o próprio acaso. Para mim, isso é arte, o encontro com você mesmo e com o mundo, expressado e transfigurado simbolicamente.

 

L'Eremo

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