A retrospectiva Mira Schendel na Tate Modern em Londres é a primeira exposição monográfica internacional da artista que é parte importante do desenvolvimento do Modernismo Europeu no Brasil. É interessante ver como ela adaptou e criou sua própria linguagem. A mostra traz mais de 250 obras entre pinturas, desenhos e instalações, algumas nunca exibidas antes. Desconhecida do público internacional e ainda muito a ser divulgada aos brasileiros, ela faz essa conexão em seu trabalho que possui profundas raízes européias. Nascida na Suíça em 1919, Mira emigrou ao Brasil em 1939 como judia fugindo do Nazismo. Chegou em Porto Alegre, onde começou sua carreira como artista. Depois se mudou para São Paulo e participou da primeira Bienal em 1951. Logo se casou com Knut Schendel, alemão, dono da livraria Canuto’s e assim se integrou ao círculo de intelectuais da capital. Mira se envolvia noite adentro em discussões filosóficas que se refletem em sua obra. Depois da Tate, a exposição vai para a Pinacoteca do Estado de São Paulo, coroando a ponte São Paulo – Londres que começou em 1966 quando Mira apresentou seu trabalho na galeria Signals.
Embora cercada por movimentos artísticos predominantes na época como o Construtivismo e o Neoconcretismo, Mira não se fixa em nenhuma determinação de estilo. Suas formas abstratas possuem um significado profundo que vai além do formalismo. Flutua entre o abstrato e o figurativo e fica na tangente, tocando tudo ao mesmo tempo. Sua obra é difícil de decifrar num primeiro olhar, mas conhecendo suas intenções fica mais fácil de compreender. Fincada em teorias existenciais, ela tenta entender a relação do homem com o mundo. Mira busca ir além da razão através da abstração, mas ao mesmo tempo mantém um ponto de identificação com o espectador através da figuração. Sua obra possui uma abertura atemporal e universal que é capaz de levar a um conteúdo ao mesmo tempo iminente e transcendente.
Consegue traduzir conceitos filosóficos em símbolos materiais encantadoramente. A exposição abre com as “Naturezas Mortas” de 1953 com que participou da primeira Bienal de São Paulo. É uma experiência de Gestalt onde ela questiona o plano achatado da pintura, criando dimensões em cores terracota pintadas em têmpera. Ela brinca com a perspectiva, retraindo e puxando o espectador para dentro do quadro. As cores sóbrias e esse jogo de percepção me lembraram pinturas de Rothko. Embora Mira foque suas influências na Europa e não nos Estados Unidos, ambos trabalham paralelamente na mesma época.
Nos anos 60 ela começa a pintar quadros mais geométricos. Porém, foge da geometria euclidiana por não seguir uma simetria. Formas básicas como círculos, triângulos e quadrados formam parte de uma linguagem metafísica universal. Mira brinca com o espaço em uma referencia à Fenomenologia. Objetos simples como uma cadeira ou uma colher ganham uma corporeidade surpreendente através do peso, do contraste e da comparação.
Suas composições místicas e enigmáticas são transformadoras. A textura e materialidade de suas “Paisagens” (1963) a aproxima da arte informel européia mas suas formas arquetípicas reafirmam seu interesse na relação do ser com o vazio, a unidade do todo. A espiral como elemento gráfico representa o espaço/tempo. Ao se colocar diante de sua pintura o espectador é transportado para uma dimensão além da racional e não pensa em nada, experimenta o vazio. Essa sensação é a mesma que ocorre com as pinturas de Rothko.
A força do significado em seus símbolos e palavras é cativante e fazem de Mira uma referencia à semiótica. Como na série “Bombas”, onde consegue representar o tempo em ascendência com um desenho tão simples. O posicionamento de uma linha no espaço contém toda a relação do ser com o vazio. Em uma viagem de volta à Itália, onde havia estudado quando jovem, conheceu Umberto Eco, grande pensador da semiologia. Seu livro “Obra Aberta” é uma grande referência para ela. ç
As letras apresentadas na série “Monotipias”, com mais de 2,000 desenhos feitos em papel de arroz são como readymades para a criação de uma poesia visual. Não possuem significados literários, são códigos de uma linguagem não-convencional, aberta e universal, um silêncio que diz tudo. Sem muita preocupação com a maestria técnica, mais pela força da simplicidade, consegue passar a essência do existir.
Diferentes línguas que fizeram parte de sua vida habitam composições criadas a partir de um fluxo de consciência de Mira. Em “Universo” (1964), que parece um esboço de sua visão da existência do homem no mundo, e em “Aleluia” (1973), composto de referências ao catolicismo. Porém, nem toda a série é tão séria. A monotipia “A Trama” traz um comentário de Mira sobre o trabalho mesmo. Onde aparece um rasgado no papel ela o aponta com uma seta e escreve “rasgou outra vez”, e assim nos aproximamos dela ainda mais pelo seu humor.
Com o mesmo papel de arroz criou suas “Droguinhas”, esculturas de papel amarrados que junto com seus “Bordados” aludem a uma produção mais doméstica e feminina, mas que também remetem ao Zen pela simplicidade da tarefa. A característica de transparência do papel de arroz foi um grande achado para Mira que na época estudava a filosofia de Jean Gebser. Para ele, a transparência é uma forma de manifestação do espiritual que está em todas as coisas e que permite uma transformação da consciência. Vemos a evolução de Mira nesse sentido no que se segue da exposição com uma reprodução da instalação “Objetos Gráficos” criada para a Bienal de Veneza de 1968. O espectador caminha em volta das peças que podem ser vistas por um lado ou pelo outro.
Com “Trenzinho” que trouxe à Londres para a exposição na Signals, “Transformáveis”, os lindos “Perfurados” e a série cinética de “Discos” seguimos no tema da transparência tão frutífero para sua carreira. Até chegar à instalação “Ondas paradas de probabilidade” que apresentou na Bienal de São Paulo de 1969. Quando muitos artistas boicotaram a instituição na época da ditadura, Mira participou querendo demonstrar que existem outras maneiras de resistir. Influenciada por Gebser, usou linhas transparentes para mostrar que existem coisas que não vemos mas que são grande parte de nossa vida, forças ocultas, como a fé.
A imaterialidade do material, o visível do invisível. Essa instalação e “Variantes” de 1997 foram o ponto alto da exposição para mim. Diversos papéis transparentes pendurados com códigos gravados, às vezes pela sua própria unha, criptografados, que não precisa decifrar para entender. Muito bem montadas pela Tate, com magnitude e ao mesmo tempo uma delicadeza admirável, revelam a força de Mira para expressar a transcendência.
A exposição fecha com suas obras dos anos 80 referenciando à dinâmica de opostos do I Ching e sua última série de 1987 “Sarrafo”, uma explosão de formas básicas não contidas no espaço recriado com a perfeita harmonia de suas composições. Assim Mira consegue juntar toda sua linguagem para gerar uma mudança na consciência humana através da presença. Apenas estar diante de sua obra já causa uma modificação. A mostra na Pinacoteca será uma oportunidade imperdível para os brasileiros participarem dessa experiência transformadora da obra de Mira Schendel.